quinta-feira, 30 de outubro de 2008

1ª Epístola de Pedro

Dimensão Literária

1 - Características literárias

a) Língua e estilo :

Grego correto, koiné rebuscada, com poucos erros gramaticais, koiné literária com um grau de notável elaboração de tal criatividade que dificulta achar pistas de núcleos de inspiração. Contudo a LXX é o ponto de referência (de 62 hapáx legómena, 35 presentes na LXX).

b) O uso do AT (LXX) :

Múltiplas citações ou referências. Proporcionalmente é o livro no NT que mais utiliza o AT (LXX).
Citações explícitas, ex: Ex 19, 5 e, 2,59; Lv 19,2 em 1,16 e Sl 118, 22 (LXX 117,22) em 2,7; Is 52,3-12 em 2,22-25, etc.
Referências sem citar textos concretos: a) personagens como Noé (3,20), Sara e Abraão (3,6); construção da casa de Deus (2,5); elementos do Êxodo como o cordeiro sem mancha (1,19) e outros.
A sua criatividade reside no uso elegante onde usando sempre o AT da LXX por vezes parafraseia e muda a ordem (Is 53,9.7.4.5.6 em 2,22-25), também se utiliza de argumentações, à moda rabínica, entrelaçando diversos textos como em 2,4-10 em que se utiliza de Is 28,16; Ex 19,6; Sl 118,22; Is 8,14; Is 9,2; Os 1,6.9; 2,1).
c) Relação literária com o NT
Com os Sinóticos: sofrer com paciência (3,14: Mt 5,10); comportamento como testemunho (2,12: Mt 5,16). serviço como virtude (1,13: Lc 12,35; 5,2-3: Lc 12,42-45).
Quarto Evangelho: “quem amais sem o ter visto em quem acreditais sem vê-lo ainda” (1,8; Jo 20,29).
(TÛNI e ALEGRE, 296-300, para a Dimensão Literária)

Dimensão Sócio-Histórica

a) Autoria, datação e localidade de composição e e destino

A 1Pd não consta do cânon muratoriano, assim como Hebreus, Tiago, as Joaninas e 2Pd. Apenas os exegetas mais conservadores se empenham em provar a autenticidade apostólica da primeira epístola (SIMON & BENOIT, 227). Traduzido em português as introduções, já clássicas em alguns seminários, figuram o autor B. D. Hale como exemplo conservador ao passo que Kümmel se apresenta no polo oposto.
Fugindo da discussão e aceitando-se a tese de que a epístola procede de Roma e ainda que é dirigida aos cristãos da Ásia Menor (1Pd 1,1). Podemos partir para a busca da situação da escrita da carta, para tanto importa também definir a datação.
O primeiro verso sinaliza que o cristianismo já se espalhara por toda a Ásia Menor o que não teria ocorrido antes do ano de 65 d.C.
Trata-se de uma época de discriminação social, não de perseguição estatal, mas de provocações de vizinhos podendo terminar no tribunal. A razão de tal fato se dá por estarem os cristãos pecando, aos olhos dos seus vizinhos, contra a harmonia e a convivência pacífica (harmonia e eirene) (GOPPELT, 400). Tal situação histórica se dá numa localidade e época em que os cristãos já são distinguídos dos judeus como se verifica da comparação de 1Pd 4,16 com At 11,26, quando são denominados christianoi. Isso nos leva a 64-90 d.C.

b) Tema: “A responsabilidade dos cristãos na sociedade”

A importância da carta, segundo Goppelt está no tema: “A responsabilidade dos cristãos na sociedade”.
Por viverem em situação semelhante a dos judeus, estes cristãos se autodenominavam de diáspora, denominação que perde o sentido e cai em desuso no séc. IV, época de Constantino, pois daí em diante são religião lícita no Império.
Talvez por influência do essenismo (Goppelt, 402-3), esses cristãos, mesmo estando entre compatriotas, se entendiam num êxodo, não como emigração, mas como peregrinos por causa da fé professada. O essenismo de Qumran, no entanto, realmente deixava de viver no meio do povo ao passo que os cristãos não. E o resultado é bem descrito por Goppelt:
“Em conseqüência, a condição de forasteiro se torna figura para a existência escatológica na qual são colocados pela fé: Quem obedecer aos preceitos do Sermão da montanha e ao chamado ao discipulado, esse ficará alheado do dia-a-dia da sociedade e rompe o estilo de vida usual para uma nova forma de ser homem. O êxodo que se ordena aos cristãos é essa conversão, e não a emigração da sociedade, como acontecia entre os essênios.” (GOPPELT, 404)

Dimensão Teológica

A mensagem da carta é no sentido de que o cristão deve ter uma atitude responsável nas instituições da sociedade. Escatologia não é alienação, de fato é resistência e trabalho para influenciar positivamente a sociedade. Tal se pode ver em 2,11s.
O cristão, em meio ao povo, e de maneira nenhuma longe dele, vivendo diferencialmente, motivado pelo amor de Deus se integra na comissão missionária imbuído de forte senso de responsabilidade ética.
O princípio que orienta essa ética é o “fazer o bem a toda criatura, por amor do Senhor” (GOPPELT, 404). De fato amar não é uma dimensão meramente sentimental, mas de ação.
Ao listar regras de comportamento da própria sociedade, ele usa o verbo sujeitar, que na concepção moderna destaca o “sub”, ao passo que no grego o radical taxis, ordenar, é que se impõe. Ou seja, não se trata de submeter, forçar, ou de se deixar ser forçado, mas de cumprir cada um o seu papel na ordem social. Em Rm 13,1s vemos o mesmo uso. Essa ética se baseia no direito natural, direito oriundo da natureza ou cosmo.
Ora essas regras do lar, ou as regras com respeito a relação senhor-escravo, não são invenção cristã, mas a recepção de regras conhecidas e veiculadas no mundo grego. Para os estóicos tratava-se do que se pode chamar de uma ética de relacionamento, é o que ensina Goppelt.
No entanto há uma diferença de conteúdo, no estoicismo o sábio se auto-realiza nas relações sociais ao passo que para o cristão as boas relações sociais se configuram em mandamento e por isso podem vir como regras cuja aceitação não é meramente voluntária, mas obrigatória para quem abraçou a fé cristã.
Mas não se trata de mera aceitação, mas de atitude crítica diante das regras do bom relacionamento. O cristão tem o dever do bom discernimento, e os critérios são: a) consciência, 1Pd 2,19, consciência para com Deus, e para com os semelhantes, nas palavras de Schlatter Korinther “um juízo que se forma na consciência do homem, prescrevendo-lhe o comportamento” (in GOPPELT, 408); b) quanto ao conteúdo, pois ao se ter Deus como critério, se aponta não para uma idéia aberta de Deus, mas para o conteúdo tradicional da fé do que seja a vontade revelada de Deus.
Para viver essa ética é necessário ter disposição para sofrer, contudo sofrer aqui é visto como graça.
A cristologia de 1Pd aponta para o sofrimento na vida de Jesus, pois sua morte fundamentou o seu “êxodo” (GOPPELT, 413).
É verificável que em nosso século, por vezes, se tem voltado demais para a morte e a ressurreição de Jesus Cristo em si mesmas, mas não como coroação da vida de Jesus, e 1Pd aponta para o sofrimento-morte-ressurreição como fundamento da vida no “êxodo”, a vida de Jesus é toda ela salvífica, a imitação de Jesus leva necessariamente à vida de confronto com a sociedade, mas não contra ela, mas contra as estruturas que desvalorizam o conceito cristão de ser político, ser social, ser anthropos, ser humano.
O sentido de ser humano é a vida voltada para a formação do novo homem aos moldes de Jesus Cristo, que viveu para fazer a vontade do Pai, e a vontade do Pai era o serviço de continuar a criação do homem aos moldes do novo Adão.
Jesus não tem limites em 1Pd, ele desce até as regiões dos mortos e até lá evangeliza. Com todo o respeito para a concepção cosmológica da época, mas a verdade do discurso da carta é que não há limites para a penetração da fé cristã nas estruturas mais profundas da sociedade atingindo-a de forma salvadora.
Conclusão
Aceitemos a exortação petrina, que não importa se vem de Pedro, mas que de fato a igreja primitiva aceitou como de autoridade apostólica, e em última instância é de autoridade divina, para nos orientar no sentido de uma vida participante, não alienada, responsável mas que cobra seu preço, que pode ser tão alto quanto o que Jesus e a nuvem de testemunhas (mártires) pagaram.
A fé cristã pressupõe uma vontade de Deus conhecida pela doutrina, e um ser humano concreto, inteligente, capaz de julgar caso a caso, sem se apegar a letra fria, seguindo o exemplo da hermenêutica de Cristo ao tratar de questões como o sábado, por exemplo. Sua chave hermenêutica era a finalidade última da Lei, a felicidade (salvação) do ser humano.

Bibliografia

GOPPELT, L. Teologia do Novo Testamento, 3ª ed. São Paulo: Ed. Teológica, 2002.
HALE, B. D. Introdução ao Novo Testamento, São paulo: Ed. Hagnos, 2001.
KÜMMEL, W.G., Introdução ao Novo Testamento, 2ª ed. São Paulo, Paulus, 1982.
SIMON, M., BENOIT, A. Judaísmo e cristianiismo de Antíoco Epifânio a Constantino. São Paulo: Pioneira: EdUSP, 1987.
TUÑI, Josep-Oriol, ALEGRE, Xavier. Escritos joaninos e cartas católicas, 2ª ed. São Paulo: Ed. A.M., 2007.

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